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segunda-feira, 8 de junho de 2009

TEXTO PARA A AULA DE 08/06/2006


LINGUAGEM E PRÁTICA TEXTUAL


1. A prática do discurso jurídico

Assumindo-se a leitura, a interpretação e a escrita de textos como a vida e o funcionalismo das atividades dos operadores do direito, há que se admitir que o domínio das técnicas textuais se inscreve entre os capítulos de maior importância para a operacionalização de informações jurídicas.
Ora, nessa medida, justifica-se a necessidade de estudo das técnicas de uso, manipulação e emprego da linguagem jurídica. O discurso das prá­ticas jurídicas (normativas, burocráticas, decisórias, científicas) demanda conhecimentos específicos, formas de locução, técnicas de redação, estilos e medidas próprios. Quando se esteve a discutir a questão dos discursos jurídicos em espécie, nesta obra, esteve-se a mencionar a existência de uni­versos de discurso que os sustentam em sua autonomia, sendo cada qual bem circunscrito por características inconfundíveis. Quer-se dizer que exis­tem peculiaridades a serem examinadas dentro de cada dimensão em que se manifesta o discurso jurídico, a saber: o universo de discurso normativo, com sua peculiar construção imperativa; o universo de discurso burocráti­co, com sua peculiar construção formular; o universo de discurso decisório, com sua peculiar estrutura persuasiva e dialética; o universo de discurso científico, com sua peculiar constituição epistemológica.
Assim, sabendo-se que alguns instrumentos técnicos são imprescindí­veis para a vivência do discurso em suas peculiares manifestações, é mister o estudo da articulação prática do discurso, tendo-se em vista o domínio dos elementos indispensáveis para a apresentação (construção) e disseca-ção (des-construção) de todo discurso jurídico.

2. A coerência textual

Em primeiro lugar, quando se está a partir para uma preocupação prá­tica no trato com o discurso jurídico, há que se ressaltar que todo discurso se manifesta como texto. Sobretudo na área jurídica, onde se encontram cadeias infinitas de práticas textuais emaranhadas e interligadas, que dão origem ao que se chama de intertextualidade. Releva-se ainda o aspecto de que as práticas jurídicas avocam a presença da escrita, de modo que todo texto documentado é fonte de informações juridicamente relevantes, passí­veis de sólida comprovação, enquanto subsistente o texto e seu suporte material.
Assim sendo, percebe-se que o texto e a escrita são duas presenças incontornáveis para todo operador do direito. Isso significa que os cuida­dos com a linguagem e a expressividade jurídica são infinitamente maiores que em outras áreas, sendo que, por vezes, a competência profissional, o desempenho judicial, a liberdade de um cliente, são medidos a partir do desempenho locutório do operador do direito. Nesse aspecto, as técnicas de escrita são imprescindíveis para que se alcancem os resultados profissio­nais desejados. As técnicas de análise e construção textual são também determinantes para o desenlace profissional. Nesse meandro impera um dado incontornável: o operador do direito está adstrito à gramaticalidade e ao formalismo do discurso escrito, que, necessariamente, é mais determi­nado pelas regras da língua que o discurso oral, para o qual impera certa margem de liberdade.
Então, tem-se que a coerência de um texto jurídico não se dá pela mera ligação de locuções técnico-jurídicas entre si (ex.: prescrição — cri­me prescrito — carência de ação — improcedência da denúncia — julga­mento extinto do processo), ou, ainda, pelo simples uso indiscriminado de uma linguagem rebuscada (ex.: "A prescrição intercorrente no âmago do iter procedimental atravanca e atabalhoa a escorreita marcha da venera­da e decantada valoração social que nos une em vivência social"), prenhe de estilísticas construções barrocas, ou mesmo de expressões latinas (ex.: "Data venia, há que se considerar desprovido de ratio iuris aquele que discute por meio de argumentos ad ferrarem, contribuindo para a produção da summa iniuria"). A coerência do texto jurídico se constata quando mei­os e fins são atingidos, e nisso existe consciência de quem são os operado­res envolvidos, qual o auditório a que se destina o discurso, quais as técni­cas envolvidas para a maximização dos resultados...
Então, deter-se na análise da questão da coerência textual parece ser um item fundamental na constituição de toda elocução discursiva na área do Direito. Isso porque se pode medir com maior propriedade a adequação do meio (discurso) para o alcance de fins determinados (persuasão, con­vencimento, intimidação, eliminação da ambigüidade, ganho de causa...).
Nessa linha, devem-se listar alguns fatores que determinam a coerên­cia de um texto, quais sejam:

• elementos lingüísticos, com sua adequada distribuição no curso do texto;informações, que retratam um conhecimento de mundo posto no texto eque devem distribuir-se de modo harmônico;
• conhecimento partilhado, que permite que o outro adentre o seu texto,que representa sua leitura do mundo;
• inferências, que impõem ligação entre elementos presentes no texto, se­jam técnicos, sejam não técnicos; contextualização, que mantém a sus­tentação das idéias dentro de setores do conhecimento, momentos histó­ricos, pontos da discussão;
• focalização, tendo em vista a adequação do texto a um eixo de tratamentodo tema;
• intertextualidade, em função da relação que o texto mantém, ou podemanter, com outras realidades textuais que o circundam;
• intencionalidade, figurando como o direcionamento ideológico e inten­cional do narrador claramente posicionado no texto;
• consistência, dada pela substância do problema posto em pauta de dis­cussão, adequadamente tratado;
• relevância, em face da devida justificação da importância do assunto emtela, bem como da argumentação que a sustenta. (1)

(1) Cf. Koch/Travaglia, A coerência textual, 1990, p. 59-81. Consulte-se a respeito, também, Damião/Henriques, Curso de português jurídico, 2000, p. 112-25.

2.1. Elementos que determinam a coerência textual

Coerência e coesão são duas faces do mesmo problema para um texto. O texto emana coerência ao seu leitor, desde que possua coesão de elemen­tos em sua estrutura manifestada (sujeito, verbo, predicado, idéias logicamente interligadas, pronomes, advérbios devidamente distribuídos...). Assim, está-se diante de uma parelha muito importante para a constituição de um discurso escrito de modo linear na transmissão da mensagem, que deve ser clara, direta, objetiva e, ao mesmo tempo, explícita, contundente e convincente. (1)
Essas idéias remetem à discussão da função contextual do discurso, que é aquela função de com-posição (synthesis — síntese) e de dis-posição (diasthesis — distensão) dos elementos que o estruturam; segundo essa função, só se pode aceitar que os elementos que sob a sua rubrica se reú­nem estejam muito mais co-ligados, coligidos, de acordo com uma regra predeterminada, e muito menos em dispersão ou em disjunção atômica.
Cada elemento do discurso deve ser capaz de significar por si só. A isso se some a significação que todos os elementos terão quando reunidos em um grande conjunto de significações e idéias. Contextualizar, portanto, significa não só essa atividade de tecer e reunir pontos a princípio separa­dos para a agregação de um todo unitário. Não há um texto se as partes que o compuserem forem absolutamente assintônicas. As partes com sentido autônomo devem reunir-se em um contexto (do latim, contexere), e, nesse sentido primeiro, pode-se "compor um discurso" (Contexere orationes).
Veja-se num exemplo contextual a distensão de uma única lógica, a lógica da insatisfação, por meio da palavra "recurso", que comporta traços semânticos que podem distribuir-se em vários contextos:

"Recorrerei ao STF"; "Recorri da decisão de primeiro grau"; "Não contente, o réu recorreu da decisão"; "Para sustar a decisão, o autor recorreu tempestivamente"; "O recurso foi indeferido pela autoridade administrativa", de onde provêm os seguintes traços característicos: /inconformismo/, /decisão prévia/, /expediente técnico/, /procedimento/, /autoridade superior/, /expectativa e possibilidade de inversão da deci­são/, /procrastinação da decisão/. Ora, o texto a ser construído em nível recursal deverá o tempo todo retomar a insatisfação como tema central, verificando na decisão da autoridade inferior suas impropriedades que geram inconformismo e apontando para a autoridade superior as possí­veis soluções e modificações a serem efetuadas sobre a mesma.

Sempre, quando se produz um texto em sua inteireza, o resultado dessa atividade produtiva deve ser a presença constante no texto produzido do "fio do discurso", algo que funciona como uma linha interna imaginária sobre a qual aquele se assenta. Dizer que um texto possui essa coesão de princípio, meio e fim significa dizer que houve a devida distribuição dos signos lingüísticos na ordem racional e argumentativa em que devem ser dispostos. Trata-se, em suma, de uma adequada mise en scène dos signos, de maneira a dispô-los segundo uma tecitura semântica a ser alcançada pelo sujeito discursivo.
Unir esses ingredientes é alcançar a virtude do texto. Para isso, a prá­tica e a devida manipulação dos elementos que são adicionados ao texto é fundamental. Em poucas palavras:

• somente conhecer o texto de lei não basta para manter uma linha de argu­mentação favorável para si, pois a lei pode ser considerada inválida,derrogada, revogada ou inconstitucional;
• somente ter bom domínio do vernáculo não basta, pois sem argumentostécnicos não se pode abalar a estrutura do discurso de um eventualcontraditor;
• somente ter teses originais e notórias para a defesa de direitos não basta,pois a adequada colocação desta, assim como sua oportuna manifestaçãopor termos convincentes, por vezes é mais importante que a própria teseventilada e assinalada como hábil para a solução de um problema jurí­dico, prático ou teórico.
Dentro desse raciocínio, pode-se dizer que a formulação de um texto consistente requer: (2)

1) unidade/completude: a proposta do texto deve ser clara desde oinício, de modo que determinar o assunto, a área de discussão, o enfoque, oimpositivo, a mensagem... é de extrema importância;

2) objetivo: guiar o leitor para a mensagem do texto, do início ao fim,conduzindo-o através de um embalo de argumentação que reitere o tempotodo a defesa do eixo central da discussão;
3) assunto/enfoque: deve-se traduzir ao leitor o enfoque de aborda­gem do tema enunciado, e isso ao mesmo tempo em que se excluem e sejustifica a exclusão de outros possíveis enfoques para o mesmo, de modo atornar claro aos olhos do leitor a direção a ser seguida e per-seguida peloenunciador;
4) estrutura: a definição da estrutura do texto se dá pela sua montagemformal e lógica; deve-se, posto o problema, opinar sobre ele, justificar aassunção de uma opinião ou posição em face do problema, para que aofinal se possa concluir retomando a afirmação da tese fundamental do tex­to, de modo que fique gritantemente enunciada a postura assumida;
5) macroestrutura: deve-se grifar a importância da lógica contextualde que se reveste toda a enunciação do discurso textual, dentro de sua ca­dência global; quando se está a falar de uma visão geral do texto, deve-sedizer que o enunciador deve preocupar-se em colocar-se na posição deleitor, e verificar se, com uma leitura externa e genérica do texto, dele seconvenceria a retirar as mesmas conclusões;
6) microestrutura: atentar para a morfologia e para a sintaxe na cons­tituição de cada frase, de cada oração, de cada período do discurso é menosum detalhe e mais um dado essencial no domínio da enunciação discursiva;as regras gramaticais, desenvolvidas com propriedade, conferem ao texto,além de sua credibilidade de conteúdo (tese exposta), credibilidade formal(forma pela qual se expõe).

(1) "Como vimos, a coerência é subjacente, tentacular, reticulada, não-linear, mas, como bem observa Charolles — 1978, ela se relaciona com a linearidade do texto. Isto quer dizer que a coerência se relaciona com a coesão do texto, pois por coesão se entende a ligação, a relação, os nexos que se estabelecem entre os elementos que constituem a super­fície textual. Ao contrário da coerência, que é subjacente, a coesão é explicitamente revelada através de marcas lingüísticas, índices formais na estrutura da seqüência lingüística e super­ficial do texto, o que lhe dá um caráter linear, uma vez que se manifesta na organização seqüencial do texto" (Koch/Travaglia, A coerência textual, 1999, p. 40).
(2) Cf. Sayeg-Siqueira, O texto, 1990, p. 10-62.

3. A análise e a enunciação do texto normativo

O texto normativo também possui sua coerência, sua lógica, e, por sua forma imperativa e objetiva, além de técnica e precisa, de exprimir coman­dos jurídicos, deve expressar com todas as letras o mandamento legislativo que visa a transmitir, seja permitindo, seja obrigando, seja proibindo.
O texto normativo, além de transmitir de modo direto uma mensagem que deve ser retratada na sociedade, e que deve ecoar no comportamento de seus cidadãos, deve traduzir claramente o grau potestativo que encarna. Assim, o uso de ferramentas específicas permite que da simples leitura do texto de lei se perceba o grau de cogência contido no dispositivo. São ex­pressões como "fica instituída", "é vedada qualquer", "é defeso à parte", "deverá o órgão expedir em 30 dias ato que regulamenta", "fica proibida", "qualquer que seja o fundamento, far-se-á", "qualquer alteração será comunicada", "não se configura crime", "está obrigado a cumprir esta obri­gação quem", "é assegurado", "é proibida", que cumprem esse papel.
Deve-se atentar, na construção de um texto normativo, para as exclu-sões que a proibição ocasiona, com os conceitos vulgares e científicos de termos específicos empregados na elocução do prescritivo, para a abrangência que se deseja conferir ao texto de lei, e seu alcance, bem como para a liberdade de aferição do sentido dos termos normativos a ser dada, por meio da interpretação, pelo juiz. Veja-se a seguinte hipótese:
"E proibida a entrada (e a permanência temporária?) de animais (domésticos, selvagens, do proprietário, de visitantes?) neste recinto".
Pode-se observar que a clareza na enunciação normativa é influencia­da pela objetividade com que se manifesta o legislador, como na dicção objetiva e direta do Código de Processo Penal, em seu art, 118:
"Antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendi­das
não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo".

O prolongamento da elocução normativa, por vezes, prejudica a pró­pria compreensão do intento do legislador ao impor este ou aquele artigo de lei. Veja-se o seguinte caso, extraído do parágrafo único do art. 22 da Lei n. 7.542/86:
"Nenhum pagamento será devido ao autorizado pelo cancelamen­to da autorização, salvo quando já tenha havido coisas ou bens, despro­vidos de valor artístico e de interesse histórico ou arqueológico, recupe­rados, situação em que tais coisas ou bens poderão ser adjudicados ou entregue o produto de sua venda, mesmo que em proporção inferior ao previsto no contrato ou ato de autorização, para pagamento e compensa­ção do autorizado".
O legislador, por vezes, agindo com afã na construção do discurso normativo, peca: pela carência de previsões; pela construção errônea do discurso normativo (sintática, semântica, ortográfica...); pela carência de informações básicas que tornariam o texto mais abrangente ou mais espe­cífico, que ampliariam seu alcance no tempo ou no espaço; pela omissão de dados necessários para a sua aplicação e para a sua conexão com o sistema de normas com que irá interagir.
Assim, mero erro de linguagem pode ter efeitos catastróficos para milhões de cidadãos. Simples erro técnico sobre início de vigência pode prejudicar/beneficiar milhões de cidadãos. Os cuidados na elaboração legislativa devem ser redobrados, tendo em vista os efeitos das normas, seu alcance e as dificuldades para a retificação de seus textos.
A linguagem normativa deve ser o resultado de um amplo trabalho de diálogo e interação democrática com as comunidades, com os grupos afe­tados pelas medidas normativas, com os técnicos em linguagem e semiótica, com as instâncias de poder envolvidas e com as comissões de redação e elaboração do relatório de um projeto de lei. Assim, o conteúdo e a forma das leis passam a respeitar as expectativas nelas depositadas.


Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem Jurídica.
3ª ed. rev. e aument. São Paulo : Saraiva, 2008

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